Sem motivos para brindar
Por mais estranho que pareça, a pandemia que se instaurou também tem impactado o setor de bebidas destiladas no Brasil. E só fez agravar – e muito – o que já era crítico. A crise econômica oriunda da COVID-19 se soma à tributação desproporcional imposta ao segmento desde 2015 e ao crescimento do mercado ilegal de bebidas alcoólicas no país. Diante de tal conjuntura asfixiante, não se imagina que a saída possa ser mais a criação de impostos ou novos tributos com risco de aumento de carga dentro da Reforma Tributária, como vem sendo discutido. O momento é crítico e requer soluções que sejam as mais justas para todos– governos, indústria e sociedade.
Em recente entrevista do CEO do IWSR (International Wine & Spirit Research), instituto que analisa o mercado de bebidas, Mark Meek, expôs que os efeitos da atual crise econômica na nossa indústria serão profundos, duradouros e inéditos, muito mais agudos do que os da crise financeira de 2008. Nas palavras dele, 2019 talvez tenha sido “o último ano normal para a indústria de bebidas”. Segundo o IWSR, as vendas globais de bebidas alcoólicas devem cair 12% neste ano e só devem se normalizar para os níveis pré-pandemia em 2024. Na América do Sul, o tombo previsto é ainda maior, de 19,7% em 2020.
Sem falar no Brasil, onde o mercado de destilados é mais prejudicado, com queda prevista de 22,9% em 2020, segundo estudo do provedor global de pesquisas de mercado Euromonitor International, que avalia o desempenho de várias categorias de produto.
O Brasil será severamente impactado e os danos vão permear muitos setores da sociedade. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) indica uma queda de 80% nas vendas e no faturamento de bares e restaurantes durante a pandemia – justamente os canais de comercialização mais representativos do setor de bebidas destiladas, onde ocorre mais de 60% do seu consumo. Segundo a associação, mais de 20% desses estabelecimentos já fecharam as portas definitivamente e o segmento já estima, até o momento, um milhão de demissões.
Ainda em consequência da pandemia, o setor de bebidas alcoólicas brasileiro viu a sua produção despencar 59,1% em abril, em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo dados do IBGE. Para se ter uma ideia da magnitude do impacto econômico, em pesquisa feita pelo IBRAC, mais de 65% dos participantes (empresas de Cachaça) tiveram uma redução de mais de 50% nas vendas do produto.
O impacto generalizado na economia e nos empregos afeta diretamente a renda da população. Como sabemos, o desempenho do mercado de bebidas alcoólicas é diretamente influenciado pela renda disponível – quanto menos dinheiro na mão das pessoas, menor a possibilidade de consumo e maiores são as chances do avanço do mercado ilegal. Retomando o estudo do IWSR, o que vem pela frente é uma desaceleração geral da nossa indústria, que levará vários anos para se recuperar desta crise.
Não bastasse isso, a pandemia ainda ressuscitou o fantasma da “Lei Seca”, com a proibição da comercialização de bebidas alcoólicas em vários municípios do Brasil como forma de reduzir o consumo de álcool. Tal medida é repudiada veementemente por órgãos internacionais como a Tracit – Aliança Internacional de Combate ao Comércio Ilegal. Primeiro porque acaba estimulando a demanda por álcool ilícito, fortalecendo o crime organizado e o comércio ilegal de bebidas. E, segundo, porque traz riscos à saúde das pessoas, que acabam ingerindo bebidas sem qualquer controle fitossanitário, sobrecarregando o sistema de saúde que se pretendia desafogar. No México, por exemplo, 100 pessoas morreram em um intervalo de duas semanas por consumirem bebidas com álcool adulterado, em localidades em que a venda de álcool estava proibida. Na República Dominicana, o consumo de destilados ilícitos já causou 109 mortes neste período.
A Lei Seca, além de robustecer a máfia do álcool ilegal, reduz a arrecadação do governo devido à evasão fiscal e impacta os negócios legítimos da indústria de destilados. E, sobretudo, a medida não é efetiva contra o que pretende combater, já que os hábitos de consumo de álcool não se alteram significativamente em função do aumento das restrições à compra de bebidas lícitas.
É importante salientar que, antes da crise da COVID-19, o nosso setor ainda tentava se recuperar do baque provocado pelas leis instituídas em 2015 no Brasil, que aumentaram a alíquota do IPI entre 25 e 30% para os destilados, enquanto reduziram a da cerveja de 15% para 6%. A medida teve um impacto desastroso na categoria de destilados. A Cachaça, que representa 70% deste mercado, sofreu reajustes de mais de 200% apenas no valor do IPI pago por alguns produtos. Se por um lado o Governo pretendia ampliar a arrecadação com o aumento do IPI para destilados, por outro, ele abriu mão de receita ao ter reduzido o IPI da cerveja para 6%.
Em paralelo, o crime organizado prospera e lucra mais de R$ 3 bilhões anualmente com a comercialização de bebidas falsificadas e contrabandeadas, que chegam a ter um preço até 70% mais barato do que as bebidas destiladas legítimas. A evasão fiscal deste mercado ilegal impôs uma perda de R$ 10 bilhões para os cofres do governo só em 2017. Por tudo isso, a tributação dos destilados já está além do ponto ótimo da curva de Laffer – ou seja, o governo mais perde do que ganha ao praticar impostos tão altos.
Diante dessa conjuntura, agravada pela COVID, não é justificável falar em aumento de impostos e nem mesmo na criação de novos mecanismos de tributação, como o Imposto Seletivo, trazido pelas duas propostas de Reforma Tributária que tramitam no Congresso Nacional, o que poderá representar sério risco de aumento da atual e já elevada carga tributária imposta ao setor de bebidas destiladas. A verdade é que impostos desta natureza pouco impactam o consumo nocivo de álcool e, uma vez mais, acabam estimulando o mercado ilegal e o crime organizado, prejudicando a sociedade e a indústria legítima de destilados.
O que se justifica é a busca política da melhor solução, do que é justo para todos. Acreditamos que a isonomia tributária no setor de bebidas alcoólicas é o caminho. Um caminho que passa pela eliminação das assimetrias e a promoção de um ambiente competitivo saudável, menos oneroso e indutor do desenvolvimento, que gere empregos e renda, cruciais neste momento de recessão global, e desestimule o mercado ilícito, que está sempre à espreita das brechas abertas por políticas ineficientes. A hora é agora.