Covid, regulamentação e o ônus das bebidas alcoólicas ilegais
Assim como o resto do mundo, o Brasil enfrenta enormes desafios medidos em vidas humanas e custos sociais e econômicos em decorrência da COVID-19. Encontrar um caminho para a recuperação dependerá não só da vacinação, mas também da redução bem-sucedida de outros riscos para a saúde e a ordem social, e do abastecimento dos cofres do governo. Entre os diversos meios de geração de receita, as bebidas alcoólicas estão entre os alvos favoritos. No entanto, com o grande e vigoroso mercado brasileiro de bebidas alcoólicas ilegais, é necessário prestar uma atenção especial para atenuar possíveis consequências não intencionais e suas implicações para a saúde pública, a ordem social e a economia.
Como em outros países, a venda ilegal de bebida alcoólica no Brasil aumentou durante a pandemia de COVID-19.
Segundo estudo realizado pela Euromonitor em 2017, quase 15% da venda total de bebida alcoólica no Brasil era ilegal. No setor de destilados, o percentual de bebidas ilícitas registrado era ainda maior: cerca de 30%.
O mercado ilegal é variado. Alguns produtos são de marcas genuínas que foram contrabandeadas pelas fronteiras com o Paraguai e outros países vizinhos para burlar o pagamento de impostos. Cerca de um quarto dos produtos ilícitos são falsificados e envolvem o reabastecimento de garrafas originais recicladas com bebida de baixa qualidade. Um estudo inicial revelou que, no estado de São Paulo, 81% das pessoas entrevistadas haviam consumido produtos ilegais.
Durante os seis primeiros meses da pandemia de Covid-19, o mercado de bebida destilada ilegal no Brasil cresceu 10,1% e chegou a quase 40% do volume total, de acordo com um estudo lançado em outubro de 2020 pela Euromonitor. Esses resultados são em linha com um relatório de 2020 da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que mostra um aumento significativo de bebida alcoólica ilícita e da frequência com que é consumida em toda a região latino-americana.
O consumo e a produção de bebidas alcoólicas ilegais são estimulados por restrições e acessibilidade de preços dos produtos legais e regulamentados.
A produção e o comércio de bebida alcoólica ilegal são, em primeiro lugar, uma questão econômica. Significativamente mais baratas e acessíveis do que os produtos legais, as bebidas ilegais são consumidas em grande parte pela população pobre. A COVID-19 não só mergulhou o Brasil em uma crise de saúde, mas também em uma crise econômica, que trouxe como consequência a queda do PIB e a perda de empregos. Mais da metade dos brasileiros sofre com a diminuição na renda familiar desde o início da pandemia; entre aqueles que ganhavam menos de um salário-mínimo, o número é muito maior.
Portanto, não é de surpreender o fato de que, com uma diferença de preço de 70% entre bebida lícita e ilícita, exista um incentivo para a produção e o comércio ilegais. Observa-se que o consumidor está recorrendo a produtos substitutos de menor custo, incluindo os ilícitos, desde o início da pandemia, algo que tende a persistir.
Questões econômicas, como renda e PIB, são motivadores “fortes” e diretos do mercado ilícito, mas outros fatores “mais brandos” também precisam ser considerados para resolver o problema. A aplicação inadequada das leis deixa o mercado ilegal muitas vezes descontrolado. E ainda existe um próspero comércio de garrafas originais recicladas que são reabastecidas com bebida falsificada. Em países de todo o mundo, restrições e fechamentos relacionados à COVID0-19 deram origem a novos canais de vendas. A oportunidade de atividades ilícitas surge quando não existe um controle desses canais e quando as normas são frouxas.
As implicações do mercado ilegal de bebida alcoólica são de grande alcance e afetam a saúde pública, a ordem social e a economia.
O impacto da bebida alcoólica ilícita sobre a saúde pública tem sido amplamente descrito, não apenas no Brasil, mas em países do mundo inteiro. Boa parte do perigo vem da falta de supervisão e de normas de produção em torno do teor e da qualidade da bebida alcoólica. Pesquisas mostram que a quantidade de álcool puro em muitas bebidas produzidas ilegalmente é significativamente maior do que o que a lei permite. Considerando-se que a produção ilegal é barata e rápida, as normas de segurança e higiene dos produtos simplesmente não existem. Análises químicas encontraram metais pesados e cobre na bebida ilegal, juntamente com metanol, e vários contaminantes. As consequências para a saúde podem ser intoxicações graves e morte.
Os principais consumidores de bebida alcoólica ilegal são pessoas de baixa renda. Como regra geral, a saúde dessas populações é pior do que entre outros grupos. O impacto da bebida alcoólica ilícita sobre elas, portanto, tende a ser desproporcional.
A produção e o comércio de bebida alcoólica ilegal estão intimamente ligados ao crime organizado, no Brasil e em outros lugares. Um estudo da OCDE reportou a interconexão de várias redes criminosas que atuam no comércio de bebidas alcoólicas e outras mercadorias, lavagem de dinheiro, financiamento de práticas terroristas e outras atividades criminosas. Um grande e crescente mercado de produtos ilícitos, portanto, aumenta o ônus da segurança pública e da segurança em termos gerais, particularmente quando os recursos já são escassos ou exigidos em outros lugares.
O mercado ilegal de bebida alcoólica também afeta significativamente a economia. Causa a perda de empregos legítimos e de receitas provenientes dos impostos sobre o álcool e outros bens de consumo. No caso das bebidas destiladas, isso procede, já que os impostos ultrapassam 50% do preço final de venda e, muitas vezes, são significativamente mais elevados. À medida que a acessibilidade dos produtos legais diminui e os consumidores recorrem a produtos ilegais, a receita do governo é perdida. A análise da Euromonitor sobre o mercado de bebida alcoólica ilegal no Brasil estima que, em 2017, o prejuízo fiscal decorrente apenas de produtos destilados ilícitos foi de R$ 5,5 bilhões. Para produtores e vendedores ilegais, a alta dos preços gera uma vantagem, já que o baixo custo dos produtos tem margens de lucro altas.
O combate à venda de bebidas alcoólicas ilegais no Brasil requer um esforço multifacetado, que inclui regulamentação proporcional, normas apropriadas, aplicação eficiente das leis e conscientização pública.
Não há uma solução simples para esse problema, particularmente durante um período de crise geral. É necessário um esforço conjunto para tratar os riscos à saúde pública, à ordem pública e aos prejuízos fiscais. Ao mesmo tempo, um mercado heterogêneo que inclui contrabando, produtos falsificados e artesanais requer abordagens flexíveis que podem ser adaptadas às necessidades específicas e locais.
O licenciamento e o monitoramento são importantes para reprimir a produção e a venda não só de produtos falsificados, mas também a comercialização de garrafas e embalagens usadas. São necessários qualificação e treinamento adequados para autoridades públicas, assim como para as operações aduaneiras que devem prevenir o comércio estrangeiro ilegal e monitorar a circulação pela cadeia de fornecedores. A produção artesanal exige a aplicação de normas sanitárias e de qualidade, além de incentivos em prol da conformidade, como modelos de tributação favoráveis. E, por fim, há necessidade de uma reforma fiscal para criar um sistema de tributação equitativo que não penalize indevidamente categorias particulares de bebidas ou consumidores de baixa renda.
À medida que o Brasil e o resto do mundo emergem da pandemia de COVID-19, será importante lembrar que soluções rápidas não são a resposta e que a redução de prejuízos em longo prazo exige mudanças sistêmicas.
Dra. Marjana Martinic
Especialista internacional em políticas de álcool com vasta experiência em comércio ilícito. Liderou o trabalho científico e as funções de desenvolvimento de políticas do International Center for Alcohol Policies (ICAP) e no International Alliance for Responsible Drinking (IARD), dedicado a reduzir o uso indevido de álcool em todo o mundo. Atuou como consultora científica independente para a Comissão Europeia e na Força-Tarefa sobre Comércio Ilícito da OCDE, e publicou amplamente sobre questões relacionadas ao álcool.